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terça-feira, 23 de abril de 2024

Sobre amar uma neurodivergente

Essa carta é para você e qualquer pessoa que um dia possa me amar.


Olá, camada fria desse furacão.

Eu queria falar com você sobre gatilhos.

Sempre que penso nisso me lembro da introdução que o Gaiman fez em seu livro “Trigger Warning”, uma coletânea de contos maravilhosos. Um dia eu queria ter te mostrado o meu e te lido juntos para falarmos sobre isso também, mas não acho que vá acontecer. Viu, a carta nem começou e eu já estou tergiversando. Bom, o Gaiman escreve: “E o que aprendemos sobre nós mesmos nesses momentos em que o gatilho é apertado é que o passado não morre. Certas coisas ficam à espreita, esperando pacientemente por nós, em passagens sombrias das nossas vidas”. Eu sinto que muitas vezes a internet banalizou o termo, mas é exatamente isso, um alçapão que se abre sob nossos pés e nos absorve completamente.

Não são apenas neurodivergentes que possuem gatilhos, claro. Pessoas com traumas de todo tipo ou fobias passam pela mesma coisa. Porém, quando se está lidando com alguém com tudo isso junto, fica levemente pior. Tente misturar ansiedade com um evento traumático e veja o que sobra depois.

Esses cacos são os pedaços da psique que vamos recolhendo aos poucos e montando para criar uma imagem agradável (tomara). Mas aquele espaço que se perdeu ou estragou, não volta, ele faz parte da imagem final. Essa figura complexa é uma que muitas vezes evitamos olhar, focando nas partes bonitas e amenas. Porém, é o que somos. 

Para quem está de fora, muitas vezes (a grande maioria) é difícil entender e contemplar o todo. Acho que no fundo todos somos um pouco assim, um lago profundo que só se pode descobrir mergulhando. E quanto mais fundo, mais assustador. Entretanto, existe outra forma de alcançar intimidade de verdade? Aquela intimidade que se consegue com o tempo, milhares de horas juntos, diálogos intermináveis, tretas e reconciliações. Aprendemos mais sobre alguém em seus momentos difíceis que nos fáceis.

Dito isso, como proceder em momentos de gatilhos? 

Primeiro de tudo, nunca, mas nunca mesmo, me chame de louca. Ou implique que não sou normal, natural. O estigma de ser neurodivergente é pesado, muitas vezes pensamos que somos mesmo loucos. Quando uma voz externa, vinda de quem nos importamos, se soma com a pior voz que existe na nossa cabeça, a coisa fica feia. Eu entro em um estado de autodepreciação que me custa demais para sair. Quando me ver falando algo como “eu sou mesmo louca”, quer dizer que já estou nesse estado mental, cuidado.

(Será que se eu criar tópicos fica mais fácil de ler? Mas isso faria essa carta parecer um infográfico e eu queria mais um diálogo que uma aula.)

Segundo, mesmo que você não entenda, respeite. Parece simples, mas não é. Quando vemos que alguém está precisando de ajuda, costumamos querer resolver ou mesmo entender na hora. Porém, a pessoa que está em gatilho não vai ser capaz de elaborar mais que algumas frases e nem sempre tão eloquentes quanto deveriam. Sim, mesmo eu que tento ser tão lúcida na maior parte do tempo. Quem não me conhece tão bem, acha que eu sou uma pessoa muito capaz o tempo todo, muito equilibrada. Mas isso está muito longe da verdade.

Então no momento crucial, acolha. Acho que faz parte do parágrafo anterior, mas queria destacar essa frase em especial. Mesmo que você não entenda perfeitamente, teremos tempo para descobrir e conversar depois. No fundo, todos queremos isso, não é? Sermos acolhidos e aceitos nas nossas diferenças.

Acho que por último, não vou fazer um tratado de mil páginas, não me culpe pela minha divergência. Não que você tenha feito isso, mas como é um tema recorrente na minha vida, achei melhor falar logo. Já aconteceu e duvido que foi a última vez.

Eu coleciono momentos de desamparo, onde pessoas que eu me importava olharam para meu lado ruim e se afastaram. Pessoas que me prometeram amor e me abandonaram com a desculpa que eu sou “intensa”. Que me viram durante uma crise de pânico, me deixaram em casa e foram embora. E ainda pessoas que se aproveitaram da minha ansiedade para me manipular e machucar. Essas são aquelas peças que eu comentei lá em cima, os fragmentos que não posso apagar se quiser ser completa. Faz parte de mim e vem junto com o pacote das coisas boas.

A mulher gentil, amorosa, culta e inteligente é uma parte apenas, que não vem sozinha. Querer viver apenas as partes boas é o mesmo que querer uma boneca em um pedestal, uma coisa que não se parece com uma pessoa real. Quanto mais incríveis as pessoas são, mais elas carregam consigo, acho que essa é uma coisa que concordamos.

Eu sou real, complexa e sim, difícil.

E me sentir abandonada, de novo, por ser quem eu sou, me machuca profundamente. Não, eu não vou morrer, ninguém morre disso. É só mais uma parte de uma imagem maior que esperamos ser mais brilhante que sombria no final.   


Cartas geralmente terminam com uma saudação, não é? Então, espero que a vida te trate bem e que encontre felicidade na paz que tanto busca. Eu, por enquanto, vou continuar sendo o que posso. Eu mesma, completa.


quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Tão perto e tão longe

Se pudesse apenas esticar os braços poderia tocá-lo
Mas meu medo impede que eu faça, me impede que eu continue
Como consigo amar e ao mesmo tempo me encolher?
Mas entendo, não liberta porquê o amor é só meu.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Esperando

Ela estava na arquibancada esperando ele passar. Ele sempre passava por ali na hora do intervalo e olhava para cima, para ela. Pelo menos era o que parecia. E ela sempre achou o menino lindo e estava animada. Cada dia ia mais arrumada para tentar impressionar. Afinal, como chamar a atenção sem falar?
Mas por quê não falava? Ah, meninas não chegam em meninos, oras, é claro!
Mas ela dava sinais. Aqueles de sorrir, jogar o cabelo, olhar mais demorado.
Ele ia perceber, claro que ia. E logo ia olhar e ir até ela. Assim esperava.


Ele estava passando, nervoso. Há algum tempo era interessado nessa menina, linda linda. E por isso mesmo, inalcançável.  Como uma menina que sempre estava arrumada e bonita poderia gostar de um cara como ele, super simples. E ela sempre estava sorrindo, com os cabelos ao vento, parecia um comercial. Nunca que ela daria bola. E pra quê chegar em alguém que vai te dar um fora? Po**a! Essas meninas são assim, não sabem como é difícil tomar uma atitude.
Era melhor deixar pra lá. E ele continuava esperando alguém que gostasse dele.


Ele chegou passou por ela aquele dia e não olhou.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Pular

Ela estava lá ao que parecia ser uma semana inteira, mas nem tinham se passado alguns minutos. E quanto mais olhava para baixo, mais dava medo. Como seria arriscar e pular?

Outras vezes já tinha tentando e no final, apesar da queda e a sensação de voar, a chegada tinha sido dolorosa. Pular de tão alto tinha suas consequências.

E ela continuava lá, parada no terceiro andar do trampolim.
Seu irmãozinho gritava, "menininha, meninha", mas no alto de seus 12 anos, não era isso mesmo que ela era? Uma menina.
Mas no que isso fazia dela menos corajosa?
E como ela estava com medo agora.

E quanto mais olhava para baixo, mais medo tinha.
A ansiedade e a lembrança de cair de mal jeito ainda eram fortes, mas e voar? 
A sensação do vento em seu rosto era melhor que qualquer dor.

"Quer sabe? Que se dane!"

E pulou.

Enquanto caía, ela só pensava no quanto amava aquilo.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Praça Virtual




As palavras abaixo foram enviadas pelo meu pai. Acho que muitos podem concordar com ele.


Lembrei de te falar de uma constatação que fiz há alguns anos, da qual, quero crer, poucos se apercebem:

A democracia foi inventada na praça, porque os cidadãos atenienses, poucos em relação à população de escravos, mulheres e estrangeiros, costumavam destilar o seu ócio criativo na praça (ágora). Entre uma conversa e outra, descobriram que podiam dispensar o serviço do governante e decidir eles mesmos em assembléia sobre as grandes questões, deixando ao Rei um papel meramente simbólico.

O Iluminismo recuperou a ideia clássica da democracia ateniense, mas como já então se tratava de dar a cada cidadão uma fração ideal do poder (um homem, um voto - mas ainda não às mulheres) e não havia uma praça onde coubessem todos, foi necessário inventar a representação local, proporcional, distrital, corporativa ou nacional, de eleitos que se reuniriam para deliberar e formar governos com o aval dos eleitores.

Pulando já para o presente: a democracia representativa faliu. E já faz um tempo. Isso se traduz, na prática, pelo deficit de representatividade sentido pela maioria. Os governantes e o congresso sempre representam minorias que os usam para explorar o povo, em todo o mundo. Há pouca diferença em termos práticos do que acontecia sob o regime absolutista do Rei que era dono de tudo. Agora são os plutocratas que manipulam os cordéis dos fantoches eleitos.

Isso tudo estava funcionando muito bem, nas "democracias" e nos totalitarismos espalhados pelo mundo, mas algo começou a acontecer: em todos os lugares as pessoas começaram a ficar cada vez mais inseguras quanto ao futuro, ao constatar que a promessa de prosperidade para todos (dos capitalistas e de tudo o mais que se não é ditadura do mercado é ditadura de alguns) é uma mentira. Os jovens não conseguem empregos depois que se formam, e o fato é que em qualquer lugar do mundo o desemprego é maior entre os jovens, mesmo onde se verifica o quase pleno emprego, como no Brasil.

Some-se a essa insegurança a explosão da conectividade. O que os cidadãos gregos fizeram lá na praça de Atenas, os jovens estão fazendo hoje na Internet, que se tornou uma praça virtual. Bom, agora ficamos sabendo, das arábias até o Brasil, que a membrana (vamos chamar essa membrana de versão oficial dos fatos) que separa o virtual do real é tênue.

Ou seja, Ana, o sistema de poder é mais virtual que a rede de murmúrios da nuvem. Só agora sabemos disso com certeza.

Daí o próximo passo. Talvez eles descubram que não precisam mais do Rei. O que está faltando para isso? Certificação digital para todos os que entram na rede e queiram identificar-se como cidadãos.

Logo, portanto, será possível que a democracia volte a ser direta, exercida a partir de uma ágora virtual.

Eu mesmo pensei que muita coisa era impossível no Brasil, a principal delas que a cidadania conseguisse sair da passividade sem ser guiada por um líder carismático com uma causa simplista.

Se eu me enganei nisso, pode ser que eu acerte quanto à democracia direta exercida na praça virtual. Ela seria melhor do que o povo na rua.